Adelina Gomes | obra/work
Conheci o trabalho de Adelina Gomes pelo cinema – precisamente com o filme “Imagens do Inconsciente”, obra-prima de Leon Hirszman filmada entre 1983 e 1986 no Centro Psiquiátrico Pedro II (*) e lançada em 1988, após sua morte. Nesta trilogia de Hirszman, o segundo episódio é relativo à artista e o título aponta para as análises feitas por Nise da Silveira: “No reino das mães” – a pesquisadora associa sua produção às relações com figuras femininas no decorrer de sua biografia.
Há uma sutileza no começo do filmeque dialoga com a produção da artista: a primeira sequência traz Adelina andando por uma ala do hospital segurando uma bolsa. Corta para ela saindo pelo portão do hospital e, na cena seguinte, ela é vista colhendo flores. Por fim, antes da narração do texto de Nise, há outro corte para a artista dentro do ateliê do hospital. Adelina sai do enquadramento segurando a mesma bolsa e a câmera focaliza em uma flor – uma daquelas coletadas – dentro da sala. De forma muito sutil, Hirszman sugere uma fusão entre o corpo da artista e a flor.
Parte das pinturas mostradas nessa exposição do Museu de Imagens do Inconsciente aponta para essa direção – a aniquilação de diferenças entre aquilo que é visto como humano e aquilo que poderia ser visto como vegetal. Isso se faz perceptível na forma como as imagens de Adelina costumam trazer um desejo em representar a fisicalidade do corpo e, mais precisamente, a importância do rosto. Seja grande e de perfil, seja em uma composição que pareça mais teatral, suas pinturas remetem ao corpo como elemento central - mesmo quando integrado a imagens que por vezes dialogam com aquilo que convencionamos chamar de paisagem ou natureza-morta.
É a maneira como a artista pinta esse corpo, porém, que irá dar esse tom de metamorfose: é difícil olhar para essa série de imagens e não perceber a inteligência como ela aplica e experimenta a cor. Mesmo que em grande parte desses trabalhos seus habituais verdes e azuis predominem, há uma constância no uso de cores fortes que causam um contraste desconcertante pelos vermelhos, amarelos, laranjas e rosas. A pintura de Adelina é permeada pela sugestão de movimentos dados por esse cromatismo.
Gosto de olhar para a produção da artista e para sua famosa frase citada por Nise da Silveira nesse documentário – “Eu queria ser flor” – de maneira ampla e trans-histórica: que as metamorfoses de Adelina se cruzem tanto com aquelas descritas por Ovídio, quanto com as transformações sugeridas por Hayao Miyazaki. Propondo uma conversa com uma produção mais recente de arte no Brasil, que seus ecos da busca pelo “corpo-flor” possam ser escutados nas poéticas de Castiel Vitorino Brasileiro e Tadaskia.
Não nos prendamos a uma forma – entreguemo-nos ao movimento e à incerteza das transformações, assim como Adelina nos ensina até hoje.
Raphael Fonseca
Pesquisador da interseção entre curadoria, história da arte, crítica e educação
* Nome do hospital localizado na cidade do Rio de Janeiro onde a Dra. Nise da Silveira fundou os ateliês de atividades expressivas.
I got to know Adelina Gomes’ work through cinema - to be exact, through the film “Imagens do Inconsciente”, a masterpiece by Leon Hirszman, filmed between 1983 and 1986 at the Pedro II Psychiatric Centre (*) and released in 1988, after his death. In this trilogy by Hirszman, the second episode is about the artist and its title refers to the analyses of Nise da Silveira: “In the realm of mothers” - by which the researcher associated her production with the relations she had with female figures during her lifetime.
There is a subtlety at the start of the film that speaks to the artist’s production: in the first sequence we see Adelina walking through a wing of the hospital, holding a bag. It cuts to her exiting the hospital gate and, in the next scene, we see her picking flowers. In the end, before the narration of Nise’s text, there is another cut to the artist inside the studio at the hospital. Adelina, holding the same bag, leaves the frame and the camera focuses on a flower in the room – one of those she picked. In this very subtle way, Hirszman suggests a merging of the artist’s body and the flower.
Some of the paintings on display in this exhibition of the Museum of Images from the Unconscious point in this direction – the obliteration of differences between that which is seen as human and that which could be seen as vegetative. This becomes noticeable in the way in which Adelina’s images tend towards a desire to represent the physicality of the body, and more precisely, the importance of the face. Be they large and in profile, or part of a more theatrical composition, her paintings refer to the body as a central element - even when integrated with images that are at times in dialogue with what we conventionally call landscape or still life.
It’s the way in which the artist paints the body, however, that will give it this quality of metamorphosis: it’s hard to look at this series of images and not see the intelligence with which she applied and experimented with colour. Even though the usual greens and blues predominate in most of these works, there is a consistency in the use of strong colours that brings about a disconcerting contrast through the reds, yellows, oranges and pinks. Adelina’s painting and research are permeated by the suggestion of movement created by this chromatism.
I’d like to consider this artist’s production and her famous phrase, quoted in this documentary by Nise da Silveira – “I wanted to be a flower” – in a broad and transhistorical way: so that the metamorphoses of Adelina intersect as much with those writings by Ovid as with the transformations suggested by Hayao Miyazaki. Suggesting a conversation with more recent art production in Brazil, may the echoes of the search for the “body-flower” be heard in the poetics of Castiel Vitorino Brasileiro and Tadaskia.
Let’s not get stuck in one form – let’s give in to the movement and the uncertainty of transformations, just as Adelina teaches us to this day.
Raphael Fonseca
Researcher working at the intersection of curating, art history, criticism and education.
* Name of the hospital located in the city of Rio de Janeiro where Dr. Nise da Silveira founded the studios for expressive activities.